domingo, 15 de janeiro de 2012

O poder do riso e da piada



Um texto especial do psicanalista ABRÃO SLAVUTZKY* sobre o poder do riso e da piada através da psicanálise e da filosofia... vale para todas as abordagens afinal, nós todos precisamos de risos em qualquer momento de nossas vidas. 
Esse post vai especialmente para um início de semana bem humarado, cheio de risos, seja de alegria, seja de rebeldia!
Divirtam-se!
O poder do riso e da piada
Publicado em ZERO HORA N° 16939, 07 de janeiro de 2012
Para autores como Kant, Bergson e Freud, o ato de rir tem uma dimensão séria que pode ser relacionada aos vínculos entre humor e rebeldia. Todos sabem o quanto a filosofia é séria, assim como a psicanálise. Sérias e pesadas, diz-se geralmente de ambas. Mas nem sempre. Houve filósofos que se ocuparam do riso, como Kant e Bergson, e Freud, pelo lado da psicanálise, escreveu um livro sobre as piadas e sua relação com o inconsciente. De fato, quando redigia sua obra máxima, A Interpretação dos Sonhos, sofreu críticas do amigo Fliess justamente pelo uso frequente das piadas nos sonhos. Numa carta, Freud lhe respondeu: “O sonhador é espirituoso demais, mas isso não é culpa minha... Todos os sonhadores são espirituosos porque estão sob pressão e a via direta lhes está barrada... A evidente espirituosidade de todos os processos está intimamente relacionada com a teoria da piada e do cômico”. Esses e outros temas são objeto da obra "Do que Riem as Pessoas Inteligentes?" Seu autor é Manfred Geier, escritor e professor universitário de linguística e literatura.

O polêmico livro, que investiga as relações entre o riso e a filosofia veio em boa hora. Partindo de Platão, que desprezou o riso como tema e negou direito de cidadania aos poetas no seu Estado ideal (e a quem é dedicado o capítulo inicial, com o expressivo título de “O Riso É Expulso da Filosofia”), o autor expõe nos capítulos seguintes o contraponto dos que tinham o riso em alta conta. Pensadores como os poetas Homero e Hesíodo, que exaltaram os risos (donde a risada homérica) nos alegres banquetes dos deuses do Olimpo, e, sobretudo Demócrito, o filósofo risonho. Aqui lembrei Montaigne em seus Ensaios: “Demócrito e Heráclito eram dois filósofos. O primeiro, achando que a condição humana é vã e ridícula, apresentava-se sempre em público a rir. Heráclito, tomado de piedade por essa mesma humanidade, andava permanentemente triste e de lágrimas nos olhos... Prefiro o primeiro, não porque seja mais agradável rir do que chorar, mas porque sua atitude é testemunha de seu desdém, porque ela nos condena mais do que a outra”.


“Olha, sem humor teríamos

todos cometido suicídio.

Buscamos permanecer humanos e

nos divertir em situações impossíveis”.

(entrevista de uma sobrevivente judia de um campo de concentração nazista)


O capítulo “O Salutar Movimento do Diafragma – Por que Immanuel Kant Achava o Riso Saudável” remete à Crítica da Faculdade do Juízo, em que Kant afirma: “Na piada inicia-se o jogo de pensamentos que somados, conquanto queiram exprimir-se sensorialmente, mexem também com o corpo... dando uma sensação de bem-estar à saúde”. Em seguida, o filósofo de Königsberg relaciona a música com a anedota, pois que ambas brincam com materiais que, ao final, nada nos dão para pensar, mas podem proporcionar intensos prazeres com sua versatilidade. Kant confiava no poder curativo do riso, receitava-o como remédio dos mais eficazes, sem efeitos colaterais danosos. O riso é um efeito da transformação de uma experiência tensa em nada. Não por acaso esse filósofo foi uma de suas referências de Freud no seu livro das piadas e em vários outros. Ambos foram ousados, ousaram pensar por si mesmo, uma aventura difícil e excitante

Voltaire disse que os céus nos deram duas coisas para compensar as muitas vicissitudes da vida: a esperança e o sono. Poderia ter acrescentado o riso, afirmou Kant. De fato, a graça e o humor, sendo parte da cultura, constituíam para o pensador alemão um desafio filosófico, a ponto de levá-lo a recomendar o riso como um ato de razão. Nesse caminho seguiu o romantismo alemão com Jean Paul, citado por Freud em seu livro das piadas. Abrindo aqui um parêntese: o termo em alemão empregado por Freud para designar piada, chiste – Witz ­– tem sua origem em Wissen (saber), Weissheit (sabedoria). Até parece piada dizer que a piada tem mais sabedoria do que se imagina! Fecha-se o parêntese. A piada é uma formação do inconsciente, que ao liberar desejos, geralmente agressivos ou eróticos, gera assim um ganho de prazer, pela economia de um gasto de sentimento. Agora até historiadores como Robert Darnton – autor de O Grande Massacre de Gatos – estudam a piada, essa “espécie de porta de entrada num sistema cultural”, conforme explicou em recente entrevista.

O livro de Geier segue com “O Prazer do Riso – Por que Sigmund Freud em Viena Contava Tantas Piadas, Apesar de não se Considerar Engraçado”. O capítulo recorda uma de suas piadas favoritas, como a do comerciante de cavalos que tenta vender um: “Se o senhor escolher este e sair às quatro horas da manhã chegará a Pressburg às seis e meia”. Ao que o cliente redarguiu: “E o que eu vou fazer em Pressburg às seis e meia da manhã?”. O que gera graça nessa história é o processo de deslocamento, da velocidade do cavalo para a desconcertante pergunta do comprador. Freud insistiu que piadas, assim como sonhos, atos falhos e sintomas, são efeitos dos processos de condensação e deslocamento. A piada é o modelo do funcionamento do inconsciente, pois tem um caráter social, só o ouvinte pode confirmar com seu riso se o que escutou foi ou não uma piada. O mesmo ocorre na clínica psicanalítica, pois só o analisando poderá afirmar se o que escutou do analista tocou ou não seu inconsciente. Além do mais, a piada, o humor em geral, é o melhor caminho para se pensar a indispensável sublimação. Lacan escreveu que a própria interpretação está mais do lado do Witzig-gracejo. Neste capítulo senti a falta de uma reflexão sobre o ensaio O Humor, escrito por Freud em 1927. Ao final desse trabalho, ele afirma que o essencial do humor é o supereu falar de forma carinhosa com o eu assustado, dizendo: “Veja, esse é o mundo que parece tão perigoso. É um jogo de crianças, bom nada mais que para brincar com ele”. Um supereu mais suave confere mais leveza à psicanálise. Lembro que Winnicott, entre outros, apontou o caminho do brincar na análise de crianças e do senso de humor nos adultos.

Pode o humor ser necessário diante do desamparo, do sofrimento e da morte? Encontrei a resposta na entrevista de uma sobrevivente judia de um campo de concentração nazista, que, perguntada se havia humor naquele inferno, respondeu: “Olha, sem humor teríamos todos cometido suicídio. Buscamos permanecer humanos e nos divertir em situações impossíveis”. Creio que a filosofia, a psicanálise, a universidade teriam muito a ganhar se tivessem no humor uma visão de mundo como a que descreveu Wittgenstein em Cultura e Valor. O humor é rebelde, seu poder é sentido por todos os autoritarismos como se sabe. É certo que o humor não resolve os problemas, mas é um bálsamo, como as artes, que alivia a dor da existência. Enfim, como diz um provérbio iídiche: o que o sabão é para o corpo, o riso é para a alma.

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*Psicanalista, autor de “Quem Pensas Tu que Eu Sou?” e co-organizador de “Seria Trágico se não Fosse Cômico – Humor e PsicanáliseFonte: ZH on line, 07/01/2012

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